Em 1966, no auge da ditadura militar no Brasil, Nelson Rodrigues teve o seu romance, O casamento, publicado há apenas um mês, censurado. Através de uma portaria assinada em 12 de outubro por Carlos Medeiros Silva, ministro da Justiça do marechal Castello Branco, veio a determinação da apreensão do romance rodriguiano das livrarias brasileiras, sob o argumento de que a dita narrativa era portadora de discursos com “torpeza nas cenas descritas e linguagem indecorosa”, um verdadeiro “atentado contra a organização da família” (RODRIGUES, 2016, p. 264). Passados mais de cinquenta anos da publicação do único romance assinado com o nome de batismo do mais conceituado dramaturgo brasileiro moderno, notamos como os temas apresentados em O casamento continuam a afrontar o moralismo do Brasil vigente. Ao representar uma família tradicional nos preparativos para o matrimônio de um dos seus membros, Nelson Rodrigues expõe, como corrobora Alexandre Pianelli Godoy (2012, p. 106), o paradoxo entre “o sentimento de descrédito da instituição familiar dentro da própria família” e a inversamente proporcional valoração ideológica, por parte dos mesmos parentes, de dogmas conservadores, patriarcais. Nesse sentido, objetivamos, neste trabalho, analisar como as personagens do romance em tela negociam com a normatividade paterna, autoritária, religiosa, misógina e homofóbica, tão em desacordo com seus desejos conscientes e/ou inconscientes de masoquismo, sadomasoquismo, exibicionismo, voyeurismo, homoafetividade, adultério, incesto e abuso sexual. Montado o drama da família tradicional burguesa, dividida entre a regularização e a secularização, compreenderemos as tensões dos desejos de “moralidade” contra os de “imoralidade” com base na Psicanálise freudiana, através de obras como Totem e tabu (2012), O mal-estar na civilização (2010) e Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade (2016), as quais problematizam a construção das proibições sociais relacionadas ao sexo, o sacrifício da pulsão de desejo individual em detrimento da harmonia da coletividade e o modo como a sexualidade vem a ser organizada, respectivamente. Conforme apontaram Edmundo Gómez Mango & J-B Pontalis (2013), bem como Jean Bellemin-Noël (1978, p. 19), acreditamos ser a teoria psicanalítica fundamental no processo de decifração do criptograma em que se transforma, “sem o saber nem querer”, o texto literário. Ao lado da bibliografia psicanalítica, também contribuirão, para os nossos aprofundamentos, as pesquisas desenvolvidas no âmbito da crítica literária por Sábato Magaldi (1992), Jean-Marie Thomasseau (2012), Alexandre Godoy (2012), Victor Pereira (2012), Ângela Dias (2013), dentre outros. Nas considerações desse artigo, apresentaremos achados que desembocam os desejos das personagens de O casamento em condições punitivas, sentimento de culpa, hipocrisia, crime, morte, tragédia e deterioração da instituição familiar, revelando ser o próprio título da obra a representação de um modelo organizacional que põe em xeque o que pode haver de mais controverso na essência humana: o erotismo e a sexualidade.
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