Recuperar a experiência etnográfica de parte da trajetória de vida do "Cacique Geral" Mbyá José Cirilo - além de ser uma alegria, uma honra e uma oportunidade para sistematizar uma radical transformação pessoal - permite o exercício de um diálogo lateral com as teorias antropológicas pós-coloniais, hermenêuticas e fenomenológicas contemporâneas, na tentativa de arremessar nosso entendendimento ao nível das proposições existenciais (cosmo-ontológicas) e fenomênicas da alteridade radical dos Mbyá-Guarani. Aquém e além dos "conceptos" e do "ser", a proposição filosófica dos Mbyá-Guarani é "estar" (WHITE:2008) ciente a interpretar constantemente os "perceptos" (LÉVI-STRAUSS,1997), menosprezando a introspecção mental analítica e quantitativa (racionalismo abstrato). Não se trata de um perspectivismo mental ameríndio, mas sim de perceptivismo corporal Mbyá centrado no fazer desabrochar novas percepções desde sentimentos advindos do "coração" (KUSCH, 2000) ou, ao contrário, das partes “telúricas” do corpo. A consciência é dirigida continuamente ao aleatório espontâneo, pois do caótico é preciso extrair compreensão: dos sonhos; dos pensamentos inspirados que chegam à mente e das sensações pouco ordinárias que afetam o corpo; dos fenômenos observados da natureza e do comportamento impensado das crianças. Tudo é objeto de atenção, percebido como signos ou presságios divinos quanto às circunstâncias da vida desperta, dados a serem interpretados em sua imediaticidade, a fim de que se chegue ao diagnóstico sobre a situação atual e à decisão certa a tomar em cada uma das encruzilhadas que perfazem o caminhar da vida. O Mburuvixá Cirilo é protagonista de uma legítima cosmopolítica transnacional em sua busca pelo "Belo Caminho da Tradição", pois sua trajetória começou criança nos confins das florestas de Misiones (Para Miri), tornando-se jovem liderança em comunidades na Argentina junto à dor pela morte prematura de seu filho primogênito, quando foi se esconder no fundo da floresta para se concentrar "espiritualmente", conversar com o Deus, ao ponto dele receber um canto mágico para lhe tranquilizar o coração e lhe tornar um Xondaru Marangatu (guardião da Tradição). Por indicação de Nhanderú, depois veio com a família na direção de Para Guaçu , litoral do Brasil, e tornou-se Mburuvixá Tenondé, liderança política originária que representa o respeito ao Tekó Porã (Belo Viver), preservando a alegria e o respeito à tradição dos mais velhos, velhas e das lideranças espirituais (Karai Kuery e Kunhã-Karai Kuery), verdadeiro articulador étnico, agente intercultural e mediador capaz de "sensibilizar o coração dos brancos" (mexer em nossos perceptos) e adaptar as políticas indigenistas desde "costuras" interinstitucionais que se efetivam em ações políticas concretas afinadas ao holismo do Mbyá-Rekó. E ainda mantendo a índole aguerrida dos primeiros Guarani, no sentido literal do termo, participando de processos de autodemarcação da Terra Indígena do Campo Molhado em 1994 e na recente retomada da aldeia Tekoa Ka’a Guy Porã nas matas dentro da área da extinta FEPAGRO em Maquiné, RS.
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