Em finais do último século, o aparecimento das chamadas redes sociais foi saudado por muitos sociólogos e teóricos da comunicação como um passo decisivo para o que então se imaginava ser uma revolução na democracia representativa. Vinte anos depois, multiplicam-se os sinais de apreensão, não apenas pela degradação do espaço público induzida pelo fenómeno, mas também pela forma intrusiva como certos Estados o instrumentalizam na luta pela hegemonia internacional. Independentemente da forma como foram sendo olhadas, a verdade é que as redes constituem uma mudança histórica na configuração do espaço público e, consequentemente, na relação entre a sociedade e o poder político. O objectivo desta apresentação é analisar até que ponto essa mudança rompeu com o paradigma até há pouco hegemónico, onde os media tradicionais monopolizavam a representação da opinião pública face ao sistema político.
 Trata-se, com efeito, de uma mudança cuja dimensão, em boa parte, ainda nos escapa, de tal maneira ela aconteceu de forma acelerada, senão mesmo abrupta. A maioria das vezes, ainda se pensa como se fosse unicamente uma continuação da crise iniciada no século passado, quando, afinal, já tudo à nossa frente se processa e propaga num outro comprimento de onda. Há 20 anos atrás, ou até há menos, era comum ouvir-se, por exemplo, que os novos meios de comunicação iriam possibilitar a monitorização efetiva do estado pelos cidadãos, assegurando mais transparência e mais democracia nas decisões de interesse coletivo. Hoje em dia, já não se fala senão em fake news, sites populistas, algoritmos intrusivos e manipulações à distância, tudo processos mais ou menos clandestinos de intervenção política, que distorcem o sentido do voto de milhões de eleitores e pervertem aquilo que é um procedimento essencial da democrácia representativa.
 Uma amostra dessa mudança a que me refiro pode encontrar-se naquilo que se passou no Brasil, em 28 de outubro passado, com a eleição do atual Presidente da República. Bolsonaro não possuía, tanto quato pode avaliar-se pelo que se diz e publica a seu respeito, nenhum carisma, muito menos curriculum, que o apontassem como previsível ocupante, por sufrágio universal, de um lugar como a chefia do estado. Não possuía, além disso, o apoio de uma estrutura partidária consistente, nem a simpatia da maior parte dos media tradicionais, condições que até aqui se julgavam importantes, senão decisivas, para uma vitória eleitoral. Apesar disso, e contra tudo isso, ele sagrou-se vencedor. É certo que já tinha acontecido algo semelhante nos EUA, com a eleição de Trump. Mas não foi exatamente a mesma coisa. Trump, sem ter a gravidade de um estadista, muito menos a desenvoltura intelectual de um Obama, era milionário e já possuía visibilidade mediática; tinha além disso a apoiá-lo, pelo menos na fase final, um grande partido político; e a par da popularidade, adquirida em programas de televisão de grande audiência, tinha também do seu lado canais como a Fox News e sites de enorme eficácia e difusão, como o famoso Breitbart, de Steve Bannon. Bolsonaro não possuía nada disso: nem curriculum, nem partido, nem media. Dizia-se, é certo, que ele era apoiado pelas bancadas parlamentares BBB – dos evangélicos (Bíblia), dos fazendeiros (Boi) e dos vendedores de armas (Bala). Mas além de não se lhes conhecer relevância no plano político, pelo menos à data, esses agrupamentos pareciam demasiado inorgânicos para garantir a angariação dos milhões de votos necessários. No entanto, apesar de ser alguém sem reputação, sem apoio nos media tradicionais, sem família política reconhecida, os brasileiros, à primeira volta, elegeram-no. Como é que se explica semelhante terramoto nas instituições que durante toda a modernidade tinham feito a mediação entre a massa de eleitores e as estruturas do poder?
 Uma explicação fácil, e mesmo tentadora, consistiria em olhar para o que está a acontecer como se fosse um mero epifenómeno, um percalço à superfície do espaço público, que em breve se irá recompor, com mais ou menos ajustamentos. Contudo, o que aconteceu, a meu ver, não foi tanto um falhanço ocasional, por mais profundas que tenham sido as suas consequências, mas um sismo que abalou os alicerces em que assentava o espaço público. Para se perceber integralmente o que de facto aconteceu, convém primeiro recordar, ainda que rapidamente, como se originaram e funcionaram na modernidade as instituições de que estamos a falar.