Abstract

O artigo aborda o filme Sophia de Mello Breyner Andresen (1969), de João César Monteiro, lendo-o como um ensaio cinematográfico sobre a essência da poesia e do próprio cinema que toma como matéria de trabalho a escrita da autora que dá título à obra. Propõe-se um percurso analítico pela estrutura e pelo conteúdo imagético do filme que o revela como um registo documental em que, apesar do esforço para a captação da pessoa de Sophia mediante a desconstrução da persona composta a partir da sua criação literária, foi impossível contornar a força da palavra escrita e das obsessões temáticas, intertextuais e até formais que singularizam o universo literário erigido pela autora até ao final dos anos 60. Mediante a identificação, no filme, de um arranjo estrutural de matriz essencialmente literária, o artigo examina o seu objeto enquanto veículo de captação fílmica da poesia – uma veleidade a que o seu realizador explicitamente se furtou num texto posterior – e explora os recursos – também eles de cunho marcadamente literário – que ativamente fazem desta obra um mecanismo cinematográfico de interrogação sobre o milagre poético que a escrita de Sophia configura, reconhecidamente, perante a crítica e o público.

Highlights

  • A curta-metragem Sophia de Mello Breyner Andresen (1969), de João César Monteiro2, é um objeto fílmico que, olhado com a distância crítica facultada pelos mais de cinquenta anos passados sobre a sua rodagem e pelo conhecimento que hoje é possível ter, retrospetivamente, sobre uma carreira encerrada em 2003, detém um estatuto particular na filmografia do realizador: por um lado, pelo seu cunho documental, Sophia de Mello Breyner Andresen representa a única abordagem do cineasta a esse género, que trata com uma retórica pouco convencional; simultaneamente, no contexto dessa singularidade, o filme não deixa de prefigurar, segundo Melo (2017), o registo que virá caracterizar o cinema posterior do seu autor

  • Motivada ou não por este contexto de celebração, a redescoberta de que o filme tem sido objeto fica bem patente na assiduidade com que lhe têm sido feitas referências na blogosfera3 e na atenção que lhe tem sido reservada em estudos fílmicos recentes, 1 Centro de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Largo Porta Férrea, 3000-370 Coimbra, Portugal

  • Afigura-se viável, sob a égide da literatura, divisar no filme zonas de representação do literário e encontrar nelas, talvez – concordando com João César Monteiro, não a forma de o cinema fixar a poesia, mas eventualmente a possibilidade de a poesia se ter imiscuído no filme pela interposta e constante presença da sua voz criadora

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Summary

Guardar num mundo claro

Esta primeira secção do filme encerra, em contraponto, com uma cena de leitura: Sophia lê ao filho Xavier, em voz alta, o final do conto A Menina do Mar. A subtração do peixe ao seu ambiente natural e a sua conversão em alimento ilustram, no plano das imagens (que o trecho citado de “Caminho da manhã” sublinha com recurso à enumeração, ao polissíndeto e à intensidade das notas sensoriais), a referência que o texto lido por Sophia faz aos homens como “animais aguçados na luta pela sobrevivência”, mas que não podem nem devem ver-se reduzidos a esse nível de existência por serem “herdeiros da liberdade e da dignidade do ser” e, portanto, convidados a olhar para a natureza não apenas enquanto fonte de alimento, mas também enquanto exemplo de valores nobres, como a liberdade e a integridade. A intensidade da presença deste motivo no quadro é o traço de força que Sophia, no filme, sinaliza na pintura de Amadeo e assume como aspiração da sua própria criação literária, que quer denunciar e superar a relação instintiva do ser humano com a natureza que a figuração do peixe representa para celebrar o nível superior de humanidade que é simbolizado pelo voo das gaivotas em céu aberto. O segundo poema é “Esta gente”, de Geografia (1967): Esta gente cujo rosto Às vezes luminoso E outras vezes tosco

Pois a gente que tem O rosto desenhado
Mas os olhos que veem essas maravilhas
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