Abstract

Analisando o percurso nocturno (nos sete capítulos “Noite”) da protagonista, pretende-se mostrar como nele opera um processo de reconstrução do real próximo da criação ficcional. O processo, com base, a um tempo, na imaginação e memória afectiva da heroína e em fragmentos da realidade factual, proporciona-lhe, até certo momento da narrativa, um mecanismo de defesa e abrigo (nocturno) perante a realidade decadente (diurna), mas acaba por se perverter, também ele, contagiado pela mesma decadência. Partimos, para essa análise, do conceito ricoeuriano de utopia, enquanto deformação compensatória da realidade, e do exemplo clássico de D. Quixote, sem, contudo, orientar a reflexão num estudo de natureza comparativa. Conclui-se com a utilidade do engenho na validação alegórica da narrativa distópica.

Highlights

  • Aos que o haviam escutado sobreveio nova lástima de ver que homem que ao parecer tinha bom entendimento e bom discurso em todas as coisas que tratava, o tivesse perdido tão rematadamente em tratando-se da sua negra e obscura cavalaria.[1]

  • Infere-se a hipótese de que também um cenário distópico pode providenciar lugares de refúgio perante a decadência de uma sociedade, compensação pelo desfalque entre a realidade desmoronante e o sujeito, nela apanhado em falso

  • Afigura-se-nos a narrativa distópica, de matriz especulativa, senão o espelho mais polido, ainda que retorcido, numa actualização do conceito stendhaliano de romance, onde se reflecte, quase caricaturalmente, a sociedade das fake news e do Big Brother que vai apertando o círculo da vida privada a cada cidadão, pelo menos um dos mais finos balões de ensaio da contemporaneidade, no modo como explora as suas falhas, que são as nossas falhas, desvelando uma realidade potencial, para onde elas poderão conduzir-nos se não forem corrigidas a tempo

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Summary

Introduction

Aos que o haviam escutado sobreveio nova lástima de ver que homem que ao parecer tinha bom entendimento e bom discurso em todas as coisas que tratava, o tivesse perdido tão rematadamente em tratando-se da sua negra e obscura cavalaria.[1]. Afirmação que verificamos válida para o caso: é consabida a dimensão paródica, fortemente carregada de ironia, que alimenta o romance de Cervantes, e parece, com efeito, dar-se o caso de o manchego procurar abrigo da decadência daquele mundo sob o mais decadente dos pilares que durante séculos lhe serviram de alicerces: a cavalaria feudal.

Objectives
Results
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